Sementes, cascas e fibras naturais estão entre os insumos usados na produção

As mãos da artesã Nelci Valentim utilizam a biodiversidade brasileira para tecer peças únicas. Denominados biojoias, os produtos valorizam os elementos naturais e compõem a maior parte da renda de Nelci, diagnosticada com hanseníase em 2015. Ela é uma das beneficiárias do projeto Reabilitação Socioeconômica, realizado pela organização NHR Brasil e da Agência Estadual de Vigilância Sanitária de Rondônia (Agevisa/RO), com o apoio do Instituto Aliança contra Hanseníase (AAL, na sigla em inglês – Alliance Against Leprosy).

Criada em 2019, a iniciativa ocorre nos municípios rondonienses de Porto Velho, Rolim de Moura e Ariquemes e usa a produção de biojoias para promover a geração de renda e a reinserção social de ex-pacientes e pacientes com hanseníase, além de aumentar a conscientização sobre a doença. 

As biojoias são acessórios sustentáveis produzidos a partir de insumos orgânicos como sementes, fibras, madeira e cascas naturais. Retirados diretamente da natureza, esses elementos transformam-se em colares, brincos, pulseiras, correntes e outros adornos por meio de um processo artesanal. Centenas de pessoas com hanseníase já participaram das oficinas, que possuem 40 horas de duração distribuídas ao longo de uma semana. Para a médica dermatologista e fundadora da Aliança contra Hanseníase, Dra. Laila de Laguiche, o projeto Reabilitação Socioeconômica combate o preconceito contra a doença. “Essa iniciativa faz renascer a autoestima e a confiança nos pacientes e ex-pacientes, valorizando a força de trabalho utilizando justamente as mãos, tão frequentemente afetadas pela hanseníase. É maravilhoso ver a transformação destas pessoas que emanam alegria, força de vida e de amor”. 

Por meio do projeto de geração de renda, Nelci conquistou a autonomia financeira. Seu tratamento para hanseníase durou um ano e, um ano e dois meses depois, a Nelci voltou a tomar Prednisona para amenizar os sintomas da doença. Ela mal conseguia segurar seu bebê e, em uma consulta de acompanhamento, foi convidada para participar de um curso de gastronomia e, posteriormente, de biojoias.

A artesã já trabalhou como zeladora, faxineira e manicure. Apesar de gostar muito de artesanato, nunca tinha ouvido falar sobre biojoias. Atualmente, ela concilia a produção das peças e o trabalho em uma cooperativa de reciclagem. “Hoje, as biojoias representam muito pra mim, é uma arte pela qual eu me apaixonei. É prazeroso ver uma peça pronta, não agride o meio ambiente e aproveita madeiras e cascas que iriam para o lixo ou seriam queimadas. E é de onde eu tiro boa parte da minha renda”, conta.

Sustentabilidade e protagonismo

Entre colares, brincos e pulseiras, Nelci calcula ter vendido aproximadamente 140 peças em feiras e por meio de encomendas realizadas pelas redes sociais. De acordo com a artesã Cristiane Oliveira, que ministra as oficinas da iniciativa, a matéria-prima utilizada nas biojoias é composta por excedentes descartados pelas árvores, por outros animais e também pelas pessoas, que comem frutas e desprezam seus caroços e sementes. Após a coleta desses insumos, inicia-se o processo de secagem e depois é preciso pensar no acabamento, que dependerá de cada produto. 

“Gosto de tratar das biojoias de acordo com a biodiversidade local e pensando na possibilidade do reaproveitamento. A biojoia não prejudica o meio ambiente, usamos o que precisamos e reutilizamos aquilo que, às vezes, não é visto como algo importante. Reutilizamos uma madeira que foi jogada fora, desenvolvemos um processo criativo a partir de um olhar para uma possibilidade que a natureza me propõe. A biojoia é um caminho de sustentabilidade que tem o compromisso com a natureza, com a Amazônia, que é algo muito precioso. O mundo precisa saber disso, levanto essa bandeira da sustentabilidade há 26 anos, explicando que o ser humano tem responsabilidade com o planeta e o consumo consciente, independentemente da doença”, explica Cristiane.

O vínculo construído entre a professora e as participantes das oficinas extrapola o espaço reservado ao artesanato. “É um espaço de troca. Ao mesmo tempo em que estou ensinando, estou aprendendo. Gosto que elas sejam protagonistas de suas próprias histórias. Consigo descobrir o que posso fazer com elas ou não, uma paciente não tinha condições de mexer em uma madeira, não tinha forças para segurar o equipamento. Sempre busco possibilidades para que elas possam aprender caminhos. O artesanato é algo extraordinário. Muitas pessoas precisam entender a importância não só do que as alunas fazem, mas também do que viveram com a doença. As biojoias despertam as pessoas para essa informação, esse é um dos maiores presentes que tenho como profissional e ser humano”.

Autonomia

Segundo Marize Ventin, coordenadora de projetos da NHR Brasil, muitos alunos já faziam artesanato antes de iniciarem as oficinas, mas houve casos de pessoas que descobriram um dom que não sabiam possuir. Ela esclarece que, para participar das oficinas, é preciso passar por uma avaliação profissional. “Como existe o manuseio da agulha, é preciso ter a liberação de um profissional que avalia o estado do paciente e seu grau de dificuldade. A reabilitação vai além da geração de renda, dentro do grupo tem familiares que participam. É muito gratificante que elas vejam que não são as únicas e conheçam histórias como as delas”.

Albanete Mendonça, coordenadora de hanseníase da Agência Estadual de Vigilância Sanitária de Rondônia (Agevisa), destaca que os participantes têm se tornado cada vez mais autônomos e ativos em espaços de exposições das biojoias. Os pacientes já participaram de feiras estaduais, como a Expovale, no município de Ariquemes, a Rondônia Rural Show, na cidade Ji Paraná, entre outras. 

Ela relata ainda que, em dezembro de 2021, foi realizado um desfile com as peças no Porto Velho Shopping, em Porto Velho (RO). No evento, pessoas com hanseníase desfilaram com as biojoias, juntamente com profissionais de saúde e representantes de algumas instituições de Saúde, do Ministério da Saúde e da NHR Brasil. “Penso que esse projeto tira os pacientes da invisibilidade e possibilita uma nova forma para ver a vida e atuar nela de forma livre, feliz, com empoderamento no ser e fazer, sentindo-se parte da vida, da sociedade, da economia, da família. O combate ao estigma é visível na proposta do projeto”, afirma.

Parceria expande projetos de combate à doença no Brasil

Com uma trajetória marcada pela solidariedade, capacitação e por campanhas de conscientização, o Instituto Aliança contra Hanseníase tem expandido cada vez mais suas fronteiras. A fundadora do AAL foi eleita membro do Conselho da Companhia Internacional da Ordem de Malta contra a Hanseníase (CIOMAL, na sigla em francês). No mês de maio deste ano, a Dra. Laila, primeira brasileira e dermatologista a ocupar uma cadeira na Companhia até o momento, apresentou o projeto de biojoias no Conselho da CIOMAL.

“A exposição das biojóias em Genebra foi de grande impacto para os presentes no evento que marcou o Dia Mundial da Hanseníase, que normalmente é feito em janeiro, mas por causa da pandemia foi adiado para maio. Com cerca de 130 convidados, entre autoridades, membros da Ordem de Malta, apoiadores e doadores, foi possível ilustrar uma das inúmeras possibilidades de trabalhos bem sucedidos para reinserção socioeconômica. Muitas senhoras ficaram encantadas com os colares e várias delas ‘desfilaram’ com muita elegância e charme durante a noite. Foi uma maneira alegre de mostrar a superação possível diante de uma doença que pode ser muito dura com o ser humano” explica Dra. Laila de Laguiche, fundadora da Aliança contra Hanseníase. 

Em setembro de 2020, a CIOMAL firmou uma parceria com o Instituto para atuar em território brasileiro, iniciando no Mato Grosso (categorizado como estado hiperendêmico para a doença), com projetos de cooperação técnica, com o objetivo de implementar teleconsultorias, e sapatarias focadas na hanseníase. As iniciativas também promovem conhecimentos sobre a doença e aprimoram o atendimento em hansenologia, por meio de treinamentos técnicos de profissionais de saúde. 

Esta foi a primeira vez em que a instituição, de reconhecimento internacional e com mais de 60 anos de atuação, desenvolveu atividades por meio de uma organização brasileira estruturada e especializada em hanseníase.

Instituto Aliança contra Hanseníase

Com sede em Curitiba (PR) e projeção internacional, o Instituto Aliança contra Hanseníase é uma associação sem fins lucrativos que une ciência, educação e filantropia no combate à hanseníase. O Instituto AAL foi fundado pela dermatologista e hansenologista Dra. Laila de Laguiche, profissional com 20 anos de experiência na área, pós-graduada em Saúde Internacional e Doenças Tropicais pelo Instituto de Medicina Tropical da Antuérpia (Bélgica). Já atuou como representante da regional Sul e Relações Internacionais da Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH). A entidade ainda conta com uma equipe de conselheiros formada por grandes referências em hansenologia no Brasil e na América Latina. Mais informações, acesse: www.allianceagainstleprosy.org

NHR Brasil

Fundada em 2021, a NHR Brasil atua como um escritório representando a ONG holandesa no país. Seus projetos são focados em áreas de alta endemicidade para a hanseníase nos estados do Ceará, Rondônia, Pernambuco, Bahia, Rio Grande do Norte e Piauí. Com diferentes iniciativas, a NHR Brasil combate a hanseníase com o objetivo de promover e apoiar o diagnóstico precoce, a prevenção de sequelas e incapacidades, a redução do estigma vivenciado por pessoas acometidas pela hanseníase e o desenvolvimento inclusivo para pessoas com deficiência. Mais informações, acesse: NHR Brasil

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